Ronaldo Rogério de Freitas Mourão
A leitura de Poeira Vital permite realizar a mais fascinante e completa viagem, desde o aparecimento da vida mais rudimentar, ou seja, desde a formação das primeiras biomoléculas - há 4 bilhões de anos - até à formação da complexa mente humana. É uma história da vida, no passado, no presente e no futuro. É a melhor apologia científica e racional da existência da vida no universo. A mais completa contribuição à idéia de pluralidade dos mundos. Para o autor, Christian de Duve, a vida está dispersa no universo sob a forma de uma "poeira vital", capaz de gerar vida em qualquer ponto em que as condições sejam favoráveis ao seu aparecimento. A inteligência é umas das conseqüências da evolução e da complexidade que a vida assume ao se desenvolver. A visão duveniana sugere que esse mecanismo evolutivo não é obra do acaso: a vida e a mente humana, como as conhecemos, são formas de manifestações naturais da matéria que está presente em todo o universo como uma poeira.
Em 1974, o bioquímico belga Christian René de Duve (1917- ), descobridor do lisossomas, dividiu o prêmio Nobel de Medicina com o citologista belga Albert Claude (1898-1983), descobridor do retículo endoplasmático, e o rumeno George Emil Palade (1912- ), descobridor do ribossoma. A visão hamanistica Christian de Duve, autor de Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico, explica-se em parte pela sua origem cosmopolita. Nascido na Inglaterra, em 1917, de Duve, formou-se em Medicina em Louvain, Bélgica, e, em seguida, trabalhou na Suécia e nos EUA, antes de retornar a Louvain, em 1947. Além do Professor Emérito na Faculdade de Medicina da Universidade de Louvain, e na Fundação Andrew W. Mellon da Universidade de Rockefeller, em ebac, Christian foi o fundador e ex-presidente do Instituto Internacional de Patologia Celular e Molecular, na Bélgica. Desde 1949, já havia obtido indícios experimentais de que, pelo menos, algumas enzimas digestivas existentes nas células deveriam existir igualmente no interior de pequenos organismos das células. Por volta de 1955, estes microssomas foram verdadeiramente identificados com auxílio dos microscópios eletrônicos, sendo chamados lisossomas, enzimas hidrolisantes que agem no fenômenos de digestão intercelular. Elas servem para a defesa das células animais e vegetais.
O grande mérito do livro de Duve é o de ter tido a coragem de abordar, o problema da origem da vida sob o ponto de vist simultâneo dos genes, das células, da evolução, da biodiversidade, do aparecimento dos seres humanos, do cérebro, da consciência, da sociedade, do ambiente e, finalmente - o que pouco fizeram até hoje -, analisar o futuro da vida, bem como questionar sobre o seu sentido ou sua falta. Nunca deixou de ter presente que a vida é o fenômeno mais complexo conhecido, sendo nós, os seres humanos, os mais complexos que a vida já produziu.
Mostrou uma coragem pouco comum na comunidade científica, ao confessar que "a atividade científica, em geral, estreita a mente ao invés de alargá-la, por força da crescente especialização dos fatos, conceitos e técnicas. À medida que nos aprofundamos, o nosso alcance diminui".
Foram dois os principais estímulos que levaram de Duve a escrever Poeira Vital. O primeiro foi o convite para realizar palestras nas quais transformou seus 550 alunos de escolas do segundo grau em citonautas que visitaram os principais pontos turísticos de uma célula. Daí surgiu o livro: A guided tour of the living cell (1984). O segundo foi quando começou a refletir sobre a origem das células. Daí surgiu o livro Blueprint for a cell (1991), que concluiu com uma afirmação revolucionária: "a vida é uma manifestação obrigatória das propriedades combinatórias da matéria" e algumas questões: "Como será a evolução da vida? Como a humanidade continuará."
Estas e outras perguntas conduziram Christian de Duve a escrever Poeira Vital, uma das maiores obras primas, comparável ao Cosmos de Alexander Von Humboldt (1769-1859) e à Origem das Espécies (1859) de Charles Darwin (1809-1882).
Para de Duve, a vida é considerada um processo natural: a origem, a evolução e as manifestações da vida, inclusive para a espécie humana, são regidas pelas mesmas leis a que obedecem os processos não-vivos. Em sua exposição, Christian exclui três ismos: o vitalismo (que considera os seres vivos resultados da matéria animada por um espírito vital), o finalismo ou teleologismo (que presume causas objetivas nos processos biológicos) e o criacionismo (que impõe a aceitação literal do relato bíblico). A análise duveniana exige que cada etapa da origem e do desenvolvimento da vida na Terra seja explicada em termos de suas causas físicos-químicas precedentes e imediatas.
Para resgatar os quatro bilhões de anos que vão desde as primeiras biomoléculas até a formação da mente humana, de Duve conduz o leitor a uma viagem através das bioeras, sete "eras" sucessivas que correspondem aos sete estágios de complexidade de evolução da vida: a era química, a era da informação, a era da protocélula, a era dos organismos unicelulares, a era dos organismos multicelulares, a era da mente, a era do desconhecido. Esta última é uma viagem ao futuro.
Poeira Vital deve ser obrigatoriamente lido e relido, com atenção, por todos aqueles que se interessam pelas questões relativas à vida, tão em voga na atualidade, como os microfósseis descobertos nos meteoritos marcianos, a possível existência dos extraterrestres, a engenharia genética e, em especial, os problemas relativos à clonagem. É um livro da atualidade e do futuro que deve estar presente, como a vida, em todos os espíritos cultos que desejam compreender o sentido da nossa existência.
Publicado no Jornal O Globo, caderno Prosa & Verso, 22 de março de 1997, Página 6.
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